JOGO DO AMOR

Vivemos uma época histórica cujo império da vontade individual determina e condiciona todo o tipo de interacções entre os seres humanos. O individualismo, enquanto valor fundamental, conduz a um vasto e enorme número de jogos nas interacções sociais; o jogo do amor é apenas um desses jogos. A análise do jogo do amor permite conhecer os jogadores nos aspectos mais profundos, mais recônditos, mais íntimos e escondidos da sua vida pessoal mas, primeiro é preciso compreender, no mínimo, os aspectos básicos dos jogos. Estruturalmente qualquer jogo é constituído por, pelo menos, dois jogadores e uma terceira parte que são as regras (com ou sem equipa de arbitragem, com ou sem espectadores) e um cenário ou teatro de operações consensualmente aceite por ambos. Funcionalmente os resultados do jogo são previsíveis pois, ou empatam ou um ganha e outro perde; no decurso do jogo há sempre lances escondidos e jogadas mais ou menos disfarçadas. Antes do início, cada jogador já tem um conjunto de habilidades, de capacidades adquiridas em treinos, ideias e experiências anteriores assim como tácticas e estratégias definidas mais ou menos inconscientemente.
O jogo do amor é um jogo de carícias, de carinhos trocados entre os jogadores que, aparentemente, procuram conduzir a um aprofundamento da intimidade. Frequentemente inicia quando os futuros amantes se encontram numa troca de olhares mais demorada e mais profunda. Seguidamente podem, ou não, esboçar um sorriso e desviar ou repousar o olhar para de seguida voltar à carga. Há, no entanto, outros modos de iniciar este jogo. Na próxima etapa a mulher, mas também o homem, desenvolvem comportamentos não verbais de cortejo e enamoramento com gestos disfarçados como alisar os cabelos, tocar com as mãos nos lábios, pequenas mordeduras dos lábios, tocar com as mãos ou arranjar as roupas em zonas do corpo com uma chamada de atenção sub-reptícia para os caracteres sexuais secundários distintivos; por vezes estes comportamentos não verbais e inconscientes são mais ousados com gestos muito disfarçados, esporádicos e aparentemente casuais que permitem delinear um trajecto apontado para os órgãos sexuais e zonas erógenas do corpo como, por exemplo, uma pessoa sentada repousando os braços e mãos em cima das pernas mas com os dedos, de certo modo, como que disfarçadamente apontando para os órgãos genitais. Muitos são os aspectos comportamentais, sobejamente descritos e conhecidos, para esta etapa do jogo mas, é a conjugação da postura, olhares, gestos e todos os comportamentos não verbais que, nesta fase, dá a cada um dos futuros amantes a convicção de que a outra parte está disponível para avançar, está disposta a jogar o jogo do amor. Cada um desenvolve uma expectativa crescente sobre o conteúdo e a forma como serão emitidas as primeiras palavras de cortejo; frequentemente surgem como aspectos banais, por vezes visam apenas a identidade social e cível da outra parte; quando já são previamente conhecidos pode algum dos futuros amantes efectuar, como que uma, mais ou menos, disfarçada declaração de sentimentos, de gosto, de desejo ou interesse. Após a troca das primeiras palavras procedem, os futuros amantes, a um aprofundamento da relação, a um aprofundamento da intimidade. É com as primeiras palavras que o jogo do amor inicia uma nova etapa; a partir daí a atenção, dedicada à outra parte, centraliza-se cada vez mais na linguagem verbal, naquilo que cada um diz mas também no modo como o faz, o seu modo de agir. A concentração da atenção dedicada à outra parte é cada vez maior, há também uma estruturação do tempo com crescente exclusão de estímulos e pensamentos que não conduzam directamente a essa relação amorosa nascente. Cada jogador procura, agora, estabelecer um compromisso da outra parte, um sinal claro e evidente, que inserido na cultura dos amantes, garanta a segurança da relação, do seu sentimento de amor e pertença; nesta cultura vigente, o beijo nos lábios, quando entregue por ambas as partes de modo intencional e dedicado, declara habitualmente a abertura oficial do jogo do amor. Progride-se imediatamente para novos beijos, abraços, encostos e palpações do corpo amado. É a corporalização do desejo num estado hipnótico de concentração no objecto amado. Neste jogo, cada parte avança para a relação com a carga do seu passado, leva consigo um guião capaz de estruturar a relação, capaz de estruturar o tempo de jogo. Sendo certo que os resultados do jogo do amor são bastante previsíveis também é evidente que em cada lance ou jogada há sempre uma finta, um segundo sentido escondido, um modo disfarçado que cada jogador adopta para enganar o adversário e, por vezes, a si próprio. É conhecendo a possibilidade do engano que os amantes, ora jogadores, se interrogam sobre a viabilidade e veracidade do amor que a outra parte lhes dedica. Cada amante não ama o outro, ama sim o amor que o outro tem para lhe oferecer, é por isso que, nos momentos de silêncio frequentemente interroga o outro, sobre o conteúdo do seu pensamento, procura saber o que o outro pensa, procura as juras de amor. Nesta fase, uma ambivalência cognitiva e decisional condiciona a relação; ora ama perdidamente ora pensa em largar o objecto da sua paixão, são as dúvidas, dúvidas de amor; é também uma fase de exaltação do ego narcísico com uma valorização hiperbólica da sua pessoa, de si própria; uma hipervalorização das suas capacidades para conseguir novos objectos de amor, é a ambivalência entre a desvalorização e destruição mental internalizada da pessoa amada, ora jogadora, e a sua veneração divinal. É nesta fase de ambivalência afectiva que se começa a delinear uma posição de vida, uma posição de jogo, uma posição estável e duradoura perante a outra pessoa, perante o outro jogador simultaneamente parceiro e adversário no jogo do amor. Assim, nesta etapa do jogo, cada jogador acaba por adoptar uma posição básica segundo a qual acredita e aceita que ambos estão bem, ambos estão mal ou então apenas um está bem e o outro mal. A posição básica de jogo adoptada irá estruturar o tempo e condicionar todo o desenrolar futuro do jogo, da relação amorosa. Se um jogador do amor acredita que está mal e o outro jogador está bem, pois irá adoptar uma posição depressiva que conduzirá a uma progressiva vitimização face ao outro; por outro lado o jogador que acreditar e tomar a posição de que está bem e o outro jogador do amor está mal, pois irá adoptar uma posição paranóica de perseguição ou então dirigir o jogo para ajudar o outro jogador a mudar e, nesta última situação, acredita e faz tudo para que o outro fique com uma melhor posição de vida, nem que para isso tenha de invadir a privacidade, independência e autonomia da vontade expressa pela parte oponente. A adopção desta posição básica face ao outro nem sempre é pacifica e conciliadora já que ambas as partes em jogo, ambos os jogadores do amor podem, em consequência do seu passado, tentar adoptar a mesma posição pela qual terão de concorrer. Por exemplo, se ambas as partes tentarem adoptar a posição de que não estão bem face ao outro, pois ambas terão de concorrer entre si pela vitimização numa tentativa da cada um ser considerado uma maior vitima do que o outro, ou seja, a verdadeira vitima, a única e verdadeira vitima; se não chegarem a um acordo e consenso, em que acreditem, sobre quem desempenha o papel de vitima pois ocorrerá a quebra da relação e ruptura do jogo do amor. Por outro lado, com a progressão natural do jogo, apesar da posição básica de vida adoptada, cada um agudiza o conflito intra-psíquico de entrega versus restrição; surgem os pensamentos de entrega total com perda da própria identidade e despersonalização versus restrição total com exaltação do egoísmo individualista e instrumentalização do outro como mero objecto sexual. Por vezes a ambivalência intra-psíquica crescente e a agudização extrema do conflito interior entre a entrega total e a restrição absoluta causa tanto sofrimento que conduz, nesta etapa, a rupturas que se traduzem na prática pelas histórias pessoais de variados curtos enamoramentos com relações sexuais amorosas esporádicas e experimentais. Estas rupturas no jogo surgem porque pelo menos um dos jogadores do amor abandona o jogo, larga e abandona o outro para não ser por ele abandonado. Apesar do intenso sofrimento de amor que o jogo agora proporciona, as juras de amor eterno são frequentes, por vezes com cenas de ciúmes e um desejo incontornável de manterem o contacto, de aprofundar a intimidade; nos momentos de exaltação do amor a necessidade de fusão corporal e mental é uma constante levada ao êxtase mas o sofrimento persiste. Para ultrapassar esse sofrimento surge a necessidade de encontrar uma terceira parte capaz de estabelecer, como que, um fiel da balança, um ponto de equilíbrio entre duas tendências opostas e conflituais: a tendência á entrega total versus a tendência à restrição total, com instrumentalização do outro jogador como mero objecto de prazer sexual. Essa terceira parte pode ser real ou imaginária, mas tem de existir, tem de se intrometer, tem de se manifestar e ser conversada e discutida entre os jogadores ora apaixonados, ora amantes do amor. Quando a relação é sadia e saudável essa terceira parte é constituída pelo desejo expresso de ter filhos, de os criar e educar, de constituir uma família duradoura e eterna; em situações mais patológicas e doentias essa terceira parte pode ser constituída por várias entidades, entre as quais frequentemente se encontra um ou vários objectos de ciúme capazes de infernizar o jogo, capazes de destruir a felicidade dos amantes jogadores; noutros casos também patológicos surgem situações de bode expiatório em que elementos da família de um, ou ambos os jogadores, não aprovam a relação o que leva os jogadores a se unirem precisamente para combater o ou os elementos da família que não aprovam a relação.
A formação da triangulação não é pacífica já que cada um dos jogadores tenta escolher a terceira parte que lhe permitirá a resolução do seu sofrimento conflitual; por exemplo um poderá ter preferência por escolher os filhos como a terceira parte envolvida enquanto o outro poderá escolher objectos de ciúme mas, uma coisa é certa, se a triangulação agora formada permite ultrapassar o conflito intra-psíquico também vai persistir durante toda a existência da relação, durante todo o jogo do amor. Chegados a esta etapa do jogo, os amantes poderão iniciar uma maior estabilidade relacional fundamentada na posição básica de vida, na triangulação e nas jogadas escondidas ou com segunda intenção; é assim que por exemplo, num casal vocacionado para ter filhos, se a mulher tem uma posição básica de vida segundo a qual acredita não estar bem mas que o outro está, pois pode viver a vida relacional a se vitimizar, a sentir que a fonte dos seus sofrimentos está no companheiro ou então na existência dos filhos; já o companheiro, se sentir que ele está bem e a mulher não está bem pois poderá viver a vida a perseguir a mulher em defesa dos filhos ou então a perseguir os filhos em defesa da mãe.
Com a triangulação e a formação de um triângulo de jogo, um triângulo dramático, um triângulo onde se vai desenrolar um drama, o drama de um família; fica estabilizado o jogo, o jogo do amor. A partir daqui, fica estabelecida a estrutura básica de toda a dinâmica social, de toda a dinâmica de grupos, de toda a dinâmica familiar, com fenómenos de liderança, rivalidades concorrenciais, alianças e comunicações entre os elementos do grupo etc.
Quando, no triângulo dramático, se exclui um terceiro elemento de natureza patológica como o ciúme, bode expiatório, ou outros como são os casos de terceiros elementos conceptuais de alcoolismo, drogas e comportamentos desviantes, pois resulta um triângulo dramático que é constituído por pai, mãe e filhos; este triângulo é mais saudável, já que procura a constituição e manutenção da prole em função da necessidade básica de reprodução e continuidade da espécie mas, ainda assim, podem existir várias formas de sofrimento familiar.
O jogo do amor, como todos os outros, implica transacções de carícias ou carinhos com lances ou jogadas mais ou menos escondidos, mais ou menos disfarçados; também a dinâmica do grupo familiar já estava, ao nível do pai e da mãe, como que escrita num guião, um guião dramático dos respectivos passados vividos, que agora apenas representam, seguem apenas o guião pelo que eliminar o sofrimento familiar consiste em descobrir e dar a conhecer a todos os jogadores envolvidos o modo como o jogo está estruturado no tempo e se desenvolve. Surge assim uma nova terapia, uma psicosocioterapia familiar; não uma terapia familiar com base nas teorias cógnitivo-comportamentais, não uma terapia familiar com base nas teorias psicanalíticas que, entre outros aspectos, defenda um objecto transicional de identificação projectiva a circular entre os vários elementos da família, não uma terapia familiar sistémica focalizada na comunicação e negociação de emoções entre os elementos da família, mas sim uma psicosocioterapia familiar que além de considerar todas as já referidas, contempla também transacções de carícias e carinhos com aspectos escondidos em jogadas assim como um psicodrama triangular num jogo: o jogo do amor.
Doutor Patrício Leite, 24 de Outubro de 2017