JOGO DO CIÚME

O jogo do ciúme existe, precisamente, porque há três partes envolvidas: duas, o ciumento e o objecto desse ciúme, têm envolvimento directo, a terceira parte pode ser uma simples ideia, sem existência real. A terceira parte tem apenas manifestação passiva. Tradicionalmente a tónica é colocada na pessoa ciumenta que é descrita como insegura, com baixa auto estima e falta de auto confiança; também em termos do desenvolvimento emocional do ego se tem aceitado que a pessoa ciumenta teve dificuldade em ultrapassar o complexo de Édipo por falta de identificação com o progenitor do mesmo sexo; no entanto o ciúme é um sentimento ou, pelo menos, uma emoção que exige o envolvimento das três partes para se manifestar: o ciumento, o objecto desse ciúme e o terceiro envolvido. Sabe-se que o objecto de ciúme, numa fase inicial, sente-se lisonjeado, sente que é desejado e esse desejo confere-lhe segurança e satisfação mas esconde um sentimento mais profundo, esconde uma incapacidade de gostar de si próprio, de se aceitar como é, por isso aceita as manifestações de ciúme da outra pessoa. A terceira parte envolvida não possui dinamismo próprio mas resulta das características que o sujeito e objecto de ciúme, em negociação mais ou menos inconsciente, lhe decidem atribuir.
Com estas três partes e a triangulação resultante fica tudo preparado para o jogo do ciúme. Cada parte pode, como num drama, assumir o papel de perseguidor, salvador ou vitima; estes papéis poderão, por sua vez, ser redistribuídos e sofrer alterações ao longo do jogo.
Cada uma das pessoas directamente envolvidas no jogo do ciúme, designadamente o sujeito ciumento activo e o objecto passivo desse ciúme, pode adoptar uma das seguintes quatro posições de vida: eu estou bem e tu estás bem; eu estou bem e tu não estás bem; eu não estou bem e tu estás bem; eu não estou bem e tu não estás bem. Frequentemente cada uma das pessoas directamente envolvidas adopta a posição, eu não estou bem e tu não estás bem. Esta é uma posição destrutiva que no extremo do ciúme patológico conduz a comportamentos semelhantes à paranóia com aspectos comportamentais compatíveis com delírio de ciúme e convicção mais ou menos delirante o que se traduz, na prática, por comportamentos bizarros de perseguição e inadaptados à prossecução da relação amorosa por excessivo sofrimento infligido a ambas as partes. O ciumento fantasia outros objectos de amor, desejos de traição da pessoa amada, mas reprime esses desejos como indignos e, por isso, sabendo que ele próprio tem desejos de amor para com outra ou outras pessoas, portanto admite que também a pessoa por si amada os poderá ter; é a repressão desses desejos sentidos como indignos que leva o ciumento a projectar, a colocar na pessoa amada os seus próprios desejos e sentimentos reprimidos. O ciumento acredita que não tem valor, que é uma pessoa indigna e não merece o amor do objecto do seu ciúme e por isso não pode ser por ele amado; o ciumento acredita que não está bem, e não está bem porque o objecto do seu amor, ora ciúme, também não está bem; acredita também que o objecto de seu ciúme não está satisfeito com o seu amor e por isso irá procurar um terceiro elemento. O objecto de ciúme também acredita não estar bem, recebe as manifestações de desejo do ciumento com agrado mas sofre com as insinuações e acusações do ciumento, sofre com a acusação de que está vocacionado para uma terceira parte, sente-se incompreendido, sente-se incompreendido com o objecto do seu amor, sente que ama uma pessoa que não acredita no seu amor e, por isso, sente-se traído por entregar o seu amor a uma pessoa que o não recebe. O ciúme é o lugar do paradoxo, da traição sentimental, é o lugar em que ambas as partes amam sem ter amor, gostam desgostosamente; estão apaixonadas por uma pessoa real mas acreditam num ideal de traição amorosa bilateral; traem o amor que dão e recebem, acreditam que o amor, dado e recebido, não é genuíno, é um amor traído; ora agem com base no amor real sentido, ora agem com base na crença da traição amorosa idealizada.
Jogar o jogo do ciúme, é jogar o jogo de duas pessoas apaixonadas que não se sentem bem consigo próprias e, por isso, também se não sentem bem com os respectivos objectos de amor. Jogar o jogo do ciúme, é jogar o jogo de um ciumento perseguidor, que se sente vítima de uma traição amorosa; é também jogar o jogo de uma vítima de ciúme que persegue o ciumento, que o tenta manter envolvido na relação. O jogo do ciúme constitui um paradoxo confusional entre os papéis de perseguidor e vítima mantido por uma terceira parte idealizada que os salva e estabiliza a relação de sofrimento mútuo numa estruturação previsível do tempo intensamente sentido por um amor, raiva, inveja e ódio, tão grandes quanto a intensidade da relação patológica.
Doutor Patrício Leite, 1 de Novembro de 2017