A
loucura, a insanidade mental, por vezes temida por vezes louvada tem, ao longo
dos tempos, acompanhado o homem e a história da humanidade. Os pensamentos e as
ideias loucas estão presentes, sem excepção, em todas as pessoas; há contudo
uma distinção entre os pensamentos loucos que surgem esporadicamente, os que
persistindo ainda permitem uma vida mais ou menos adaptada, e finalmente
aqueles que desregulam completamente a vivência social da pessoa afectada.
Tradicionalmente a distinção entre obsessão e delírio tem sido fundamental para
catalogar a pessoa entre aquelas que sofrendo ainda se podem adaptar, ou não, a
uma vida social produtiva; na realidade o fenómeno é um só, obsessão e delírio
são a continuidade da mesma perturbação mas com manifestações diferentes.
Obsessão
é entendida como a irrupção na superfície da consciência de uma ideia egodistónica,
portanto uma ideia que a pessoa não quer pensar, que tenta afastar do
pensamento mas não consegue, é uma ideia persistente.
Delírio
é entendido como um erro do juízo, um erro ou engano na captação da realidade;
mas não é um erro qualquer, é um erro com convicção inabalável, uma convicção
errónea que persiste e resiste perante a contradição insistente da melhor
argumentação lógica que lhe possa ser oposta.
Obsessão
e delírio são manifestações do mesmo fenómeno mental e, por isso, têm aspectos
comuns; na realidade e para enunciar apenas alguns dos seus aspectos comuns
salienta-se que apesar de as ideias obsessivas e as delirantes se associarem
com emoções de medo e ansiedade, ambos se encontram no domínio cognitivo, das
ideias ou do pensamento; tanto na situação obsessiva como na delirante há uma
hipervalorização do conteúdo das ideias; ambos consistem em ideias persistentes
e incapazes de erradicar da consciência; em ambos os casos a persistência das
ideias resiste à argumentação lógica, simplesmente no caso da obsessão com insight a pessoa reconhece, no fundo da
consciência, a irracionalidade dessas ideias e no caso do delírio mantém a
convicção delirante mais ou menos inabalável; uma obsessão com pouco ou nenhum insight é difícil ou impossível de
distinguir do delírio já que o delírio é apenas uma obsessão sem qualquer insight; o delírio e a obsessão sem insight são uma, e uma só, manifestação
do mesmo fenómeno mental; o delírio é, na sua essência, uma obsessão sem insigfht.
A
história do delírio e pensamento delirante, com ou sem ideias de autoreferência,
acompanha a história da medicina, e da psiquiatria desde o seu início, no entanto
a perturbação obsessivo-compulsiva, enquanto agrupamento sindromático e
nosológico, teve grande desenvolvimento, e divulgação, com a teoria
psicanalítica, que via na sua etiologia uma fixação na fase anal do
desenvolvimento libidinoso; actualmente a classificação das doenças mentais com
base na associação estatística, da respectiva semiologia, ainda mantém o
diagnóstico, porém com o desenvolvimento e conhecimento da neuroquímica, e da
neurobiologia do sistema nervoso, a tendência será para agrupar os fenómenos mentais
com base na fisiopatologia e dados objectivos de medição laboratorial.
Em
termos de dinamismo psicodinâmico a dúvida, e respectiva interrogação, que
surgem persistentemente na pessoa obsessiva, funcionam como um mecanismo de defensa
do ego contra o delírio. As teorias do comportamento, e respectivas terapias
cognitivas, ao lidar com pessoas em situação delirante tentam inocular, de modo
indirecto, a dúvida e a incerteza nas respectivas crenças e convicções de modo
a promover a autointerrogação, na procura de respostas alternativas, como modo
de pensar capaz de diminuir a convicção delirante e favorecer um insight compreensivo da sua situação mórbida.
O
pensamento e os seus mecanismos fisiológicos continuam uma incógnita mas, à luz
dos conhecimentos físicos e químicos das actuais neurociências, trata-se apenas
de um fenómeno electroquímico que ocorre em determinadas zonas do cérebro; na
realidade a implicação dos receptores serotoninérgicos(5-HT2) e dopaminérgicos(D2) nas situações obsessivas e
delirantes permitiu o desenvolvimento e utilização de novos psicofármacos como
os inibidores selectivos da recaptação da serotonina e os neurolépticos
atípicos com ganhos para a saúde mental.
Os
receptores de neurotransmissores, como a serotonina e dopamina, são
frequentemente glicoproteinas transmembranares associadas à familia da proteina
G que permite a transdução de estímulos externos em sinais intracelulares capazes
de manter o funcionamento do organismo vivo. As perturbações do pensamento,
entre as quais obsessões e delírios, podem agora ser explicadas à luz da fisiopatologia
da inflamação (rubor, tumor, calor, dor e, mais tarde, perda de função) em
conformidade com a explicação atribuída aos fenómenos da doença orgânica.
A
descoberta e utilização da clorpromazina revolucionou, em pouco mais de meio
século, a saúde mental com a crescente desinstitucionalização dos doentes; encarar
as perturbações do pensamento como um mecanismo inflamatório permitirá o
desenvolvimento de novos psicofármacos capazes de actuar exactamente na reacção
química específica e responsável por essa alteração neurobioquímica.
Doutor Patrício Leite, 26 de Dezembro de 2017